Salve, salve! Zona Norte, meu setor e todas as quebradas desse verdadeiro inferno colonial chamado Teresina, quiçá Brasil, quiçá América-Latina, quiçá todos nós que sofremos com o roubo colonial, como canta Luedji Luna. Estamos aqui, minhas palavras e seus olhos me lendo. Nesse instante em que me lê, somos um Corpo no Mundo, um espaço entre, como fantasia a “renomada e inigualável”(risos new meme museum) artista da performance Marina Abramovich. Existirmos, a que será que se destina? Caetano pode ter vacilado, mas quando ouço essa música consigo sentir o amor dele por Torquato Neto atravessando o deus mais lindo, O Tempo. E como diz um afeto distante que mesmo rompido ainda me inspira “Erros não são pecados”. Acho que vacilos não são pecados também. Fico pensando sobre esse amor que atravessa o tempo e é capaz de transformar os erros ou vacilos em acertos. Talvez eu seja o último romântico do litoral desse oceano atlântico e só falte reunir a zona norte a zona sul, de verdade, de Corpo e Alma, como canta o Inquérito. Gueto, Corpo e Alma. Estou tão focada, com a cabeça tão firme, que todas as músicas ouvidas, através do gosto musical do meu pai, de amores que não deram certo, de encontros e desencontros: todas elas parecem fazer todo sentido no momento em que estou escrevendo, o que venho chamando de sincronicidade do inconsciente coletivo, um conceito jungiano. Dizem que Exu mata um pássaro ontem, com a pedra que atirou só hoje. E é nessa máxima sobre o Deus Tempo que estou escolhendo não sobreviver, nem resistir: mas simplesmente viver. Ou quem sabe, escolher como eu quero morrer. Esse enigma de matriz africana, um provérbio que atravessa toda a cosmologia da diáspora em Pindorama, Abyala… que os herdeiros chamam de Brasil, sempre dá um nó na minha cabeça. Acho que é o Saravá mais bem dado de todos os tempos. Pois nunca esgota em uma só interpretação e é uma pergunta que sempre vai se adaptar a qualquer coração que o escute. Com o mesmo efeito provocador, seja no erudito, no popular, nas massas. Peço licensa aos que vieram antes e os que vão vir depois, aos mais velhos e aos mais novos pra tecer minha interpretação, que é o que fundamenta esse manifesto. Sim, é um manifesto completamente alicerçado em valores afro-diáspóricos de terreiro. E quando estamos no dia a dia de um terreiro, a gente aprende que tudo, os mínimos detalhes, tem um fundamento… mesmo que a gente não seja permitido saber qual é. A gente aprende sendo humilde, dedicado e solidário com nossos irmãos de santo. E com o tempo (ele mais uma vez), tudo vai fazer sentido. E hoje, a pedra que eu decidi atirar foi uma ação direta numa exposição de arte contemporânea que eu e os meus leêm como mais um roubo colonial. Essa ação não é “exclusiva nem original”, estamos totalmente inspirados nas famílias de pixadores de São Paulo que fizeram uma ação coletiva na Bienal de Arte Contemporânea de São Paulo em 2008: os que vieram antes e abriram caminho. Nunca esqueceremos disso! Porque nós todes de periferia sentimos esse roubo colonial: somos lembrados dele o tempo todo quando não conseguimos comprar algo que nos fazem desejar muito, como se o nosso amor dependesse de ter coisas que não temos. Isso nos fere: isso nos machuca, adoece, mata mesmo. A gente que sente no coração revive através dessa arrogância contemporânea um trauma coletivo que o Brasil se recusa cada vez mais a olhar: a ferida ainda está aberta. Existem vermes e todo tipo de pûs e inflamação. E realmente são pouquíssimos os que suportam olhar e tem a coragem necessária para limpar a ferida. Essa ojeriza leva muitos de nós a fazer de tudo pra esquecer que machucaram povos inteiros e ainda dói como se fosse ontem. E é. Quando você pensa no Tempo da Terra, ou do Universo. O que aconteceu conosco no Brasil foi ontem, praticamente. Já parou pra pensar nisso? E eu me permito imaginar através do aforismo iorubá sobre Exu que esse hoje que eu decido fazer algo de consequências totalmente imprevisíveis que podem levar inclusive a minha morte… gosto de pensar que o que eu estou fazendo pode ser decisivo para um parente de 500 anos atrás, conseguir fugir pela mata até encontrar um quilombo, vai fazer com que um parente que nunca vi acerte a flecha no inimigo antes dele tirar a sua vida. Entende o que quero dizer? Como se a consequência mesmo da ação de hoje pudesse mudar o passado. De volta pro futuro. Sankofa às últimas conseqüencias. Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que atirou só hoje. Axé pra quem é de Axé! Assinado: Lud, Vênus, Mantega Derretida, e tantos nomes que posso ter.